Tania Brandão: “Se você é fã de Chico Buarque, a festa inclui a sua alma – corra, não perca Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos”

Confira a análise de uma de nossas maiores autoridades em Teatro, a crítica Tania Brandão para Todos Os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos

Confira a análise de uma de nossas maiores autoridades em Teatro, a crítica Tania Brandão para Todos Os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos:

A cena e a festa:

o aniversário do poeta cantador

Por Tania Brandão

Palpitações: a cena se faz como as batidas de um coração vadio, embriagado de felicidade por ter a chance de celebrar os setenta anos do cantador supremo das rodas requintadas de afeto do país. E se faz também em rendas, fitas, retalhos, recortes, enovelamentos, tiras de luz, focos de cor, volteios e passos sensuais de amor. Amor à canção, no que ela tem de contracena, dor de peito que se abre e dialoga com o outro sobre o vazio brutal que desaba por causa da simples vontade de amar. Se você é fã de Chico Buarque, a festa inclui a sua alma – corra, não perca Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos, de Möeller & Botelho. Aliás, se você for fã de verdade, o presente já começará com a mentira do título – a celebração dura mais do que o tempo declarado.

As palavras não foram escolhidas ao acaso – palpitações, celebração dizem muito do que você vai ver. De saída, vale observar que a peça segue um formato musical ainda pouco explorado, mas já com alguma história. Trata-se, precisamente, de uma celebração, no sentido de homenagear o artista sem recorrer à biografia, mas sim pinçando os grandes momentos de sua arte e uma visão da obra. Opção aproximável foi seguida, por exemplo, em Sassaricando e em É com esse que eu vou, de Rosa Maria Araújo e Cabral, homenagens a um gênero musical, ou em Beatles num céu de diamantes, da dupla Möeller & Botelho, ou, em um caso mais recente, no pequeno musical Quando a Gente ama, de João Baptista. A linha parece remontar a Mamma Mia, ode ao grupo Abba. Neste caso agora, o foco incide sobre a teatralidade das canções de Chico Buarque, algumas escritas para musicais mesmo, outras voltadas à exaltação ao amor e às mulheres.

As linhas escolhidas levaram os autores a conceber uma estrutura um tanto complexa para armar o espetáculo, do texto à direção. Assim como a cenografia, de Rogério Falcão, deixou de indicar o lugar da ação e preferiu erguer um espaço pródigo em lugares teatrais, de efeito, a dramaturgia, de Claudio Botelho, limitou-se a insinuar um fiapo de trama, um pretexto para o canto, para louvar o próprio teatro e festejar as mulheres. E a direção, de Charles Möeller, optou por uma marcação, uma movimentação da cena, voltada para a estetização, o belo efeito, a geometria mais elegante para o espaço. O contorno é visível também no figurino de Marcelo Pies, um emaranhado de tramas, cores, tecidos e trabalhos de linha que evoca o passado, a roupa teatral e a feminilidade.

A ação começa abordando as desventuras de uma companhia teatral imaginária e louca, memórias dispersas de um velho chefe de elenco caduco ou talvez pura invencionice de um ator fracassado. Não há como não lembrar do filme Quando o carnaval chegar. Há uma discreta referência à composição das velhas companhias, com seus atores especializados. Soraya Ravenle é a primeira atriz, casada com o dono da trupe. E uma crise acontece com a chegada de uma diáfana candidata ao papel de Margarida, Malu Rodrigues, pois a peça A Dama das Camélias deverá ser apresentada em viagem mambembe pelo país.

Infelizmente, para liberar o puro fluxo das canções, esta trama e a homenagem subjacente ao teatro são deixadas de lado. Mas não dá para sofrer: com o excelente elenco de cantores musicais reunidos no palco, a emoção se transporta do fato teatral para o impacto das performances sem qualquer chance para lamentação.

O espetáculo, portanto, é arrebatador no sentido de uma teatralidade muito peculiar, que jorra da música. Para tal resultado, alguns trabalhos foram decisivos, a começar pela direção musical, muito requintada, de Claudio Botelho. Ela se beneficia da extrema riqueza da orquestração e dos arranjos de Thiago Trajano, da sofisticação dos arranjos vocais de Jules Vandystadt e da sensacional performance dos músicos Thiago Trajano (também regente), Luciano Correa, Priscilla Azevedo e Marcio Romano. Em vários momentos, dá para duvidar que sejam apenas quatro instrumentistas em cena.

Banhados em uma luz de show e de féerie, marcada por um uso bastante peculiar de tubos leds coloridos, um trabalho impressionante de Paulo Cesar Medeiros, os atores transformam a noite em sonho de arte.

Soraya Ravenle é de fato e de direito a primeira dama da cena, ela é um arrebatador acontecimento musical. As suas interpretações para Bom conselho, Vida e Não sonho mais são atos de canto cristalino marcados por seu estilo, em que a técnica se colore de sentimento, porém traz sempre uma pitada maliciosa de irreverência. Tudo cessa, no entanto, tudo se transfigura e se transforma em puro drama e poesia rascante em Gota d’água.

E ela não está só – as vozes lapidares de Malu Rodrigues, doce e atrevida em O Circo Místico e O Último Blues, Estrela Blanco, sensual e sonhadora, em Teresinha, uma surpresa marota em A Violeira, Lilian Valeska, irreverente em Biscate, telúrica e sofrida no inesquecível Funeral de um Lavrador, e Renata Celidonio, espirituosa e irônica, em Sob medida, trazem um tesouro de sonoridades e emoções, erigem uma cena-altar de consagração da mulher. Cada uma conta com pelo menos um momento de expressão plena de sua arte.

Neste quadro, Davi Guilherme e Felipe Tavolaro, também cantores-atores de excelência, se projetam em especial por sua desenvoltura como galãs, isto é, papéis masculinos devotados a cortejar as belas damas. Claudio Botelho, visivelmente tomado pela emoção na estreia, não segue a linha de alto padrão de canto que ele próprio fixou, envereda desenvolto por um desempenho mais narrativo, recitativo mesmo, compatível com a função de contador-apresentador da história.

Portanto, a cena é uma ousadia e uma novidade – para os amantes ferrenhos dos musicais, vale a ressalva de que a dramaturgia, aqui, falhou, deixou de ter o impacto que as primeiras cenas anunciavam. No entanto, vale prestar atenção no caminho assinalado. Afinal, se o país é musical e o nosso corpo pulsa em um ritmo muito nosso, interessa admirar este musical em que a ação deixou de ser continuidade e se tornou palpite, no sentido de piscar, pulsar. Não um palpite infeliz, mas um irresistível palpite musical. Ah, vá ver!

 

Fonte: Blog Folias Teatrais – Tania Brandão: 21/01/2014.