Rio Show: Broadway à Carioca

Musical ‘Se meu apartamento falasse’ estreia em montagem de Charles Möeller e Claudio Botelho

O Globo: 15/12/17

Por Paula Lacerda 

Provavelmente, as canções “I’ll never fall in love again” e “I say a little prayer” fazem parte do seu repertório musical. O que talvez você não saiba é que as duas, hits de Burt Bacharach eternizados no cancioneiro mundial, têm sua história relacionada ao espetáculo “Promises, Promises”, primeiro e único musical de Bacharach, baseado no filme “Se Meu Apartamento Falasse”, dirigido por Billy Wilder em 1960 (com Shirley MacLaine e Jack Lemmon no elenco, o longa conquistou cinco Oscars).

A peça, que ganha a partir de hoje, no Teatro Bradesco, a encenação da dupla Charles Möeller & Claudio Botelho, com o mesmo título do filme, teve a sua montagem original em 1968, com roteiro de Neil Simon. “I’ll never fall in love again” foi composta especialmente para o musical, assim como outras canções que posteriormente ganhariam vida própria. “I say a little prayer” não foi criada para a peça, mais foi incorporada ao seu repertório no revival que a ela teve na Broadway, em 2010.

Em cena, em sua segunda montagem no Brasil (a primeira foi de Victor Berbara, em 1970), a história de Chuck Baxter (Marcelo Medici), o atrapalhado funcionário de uma companhia de seguros que empresta seu apartamento para encontros de colegas de trabalho com suas amantes, em troca de vantagens e promessas de promoções. Chuck vê seu próprio sonho amoroso desmoronar quando descobre que a mulher que ama, Fran Kubelik (Malu Rodrigues), tem um caso com o chefe, Sheldrake (Marcos Pasquim). E é isso: ainda que você não esteja familiarizado com as versões em português criadas para a peça que estreia hoje, prepare-se para cantarolar: “I’ll never fall in love again” e “I say a little prayer” estão presentes na versão que Möeller e Botelho levam ao palco, assim como a que inspira o título, “Promises, promises”, “Knowing when to leave” e outras.

— Burt Bacharach é um cara que esteve presente nos ouvidos de várias gerações. Teve mais de 50 músicas nas paradas de sucessos, durante décadas, uma carreira importante de composições para o cinema, recebeu honrarias do Oscar, foi gravado por Beatles, Os Carpenters, Dionne Warwick, Aretha Franklin, Tom Jones… Sou absolutamente fã da obra dele — diz Möeller.

O musical é digno de Broadway, com elenco estelar (além dos já citados, uma luxuosíssima participação de Maria Clara Gueiros) e orquestra de oito músicos ao vivo. Mas foi feito na raça: o investimento, de R$ 1,3 milhão, é apenas 20% do valor autorizado para captação e abaixo dos padrões Möeller & Botelho. Não é a primeira vez que os dois enveredam pela obra do pianista e compositor americano, que já foi arranjador de Marlene Dietrich e segue na ativa, aos 89 anos, compondo e cantando. Na comédia musical “Cristal Bacharach”, de 2004, a dupla embalou a história de uma mãe e seus oito filhos com hits do artista. Já estavam lá algumas canções de “Se meu apartamento falasse”, assim como no show, apresentado este ano em São Paulo e dirigido pelos dois, em que Malu Rodrigues (a mocinha de “Se meu apartamento…”) cantou músicas de Bacharach.

Mas, se nas duas experiências anteriores, as músicas apareceram fora de seu contexto original, agora elas contam histórias, tal como quando foram compostas.

— “I´ll never fall in love again” (interpretada por Marcelo e Malu, na peça) é uma canção de amor ao contrário. Diz que amar não vale a pena para, logo depois, abrir uma janela, dizer que até amanhã não vai se apaixonar. Foi desafiador fazer versões em português para estas músicas, porque elas são muito pop, posso apanhar na escadaria do teatro — brinca Botelho, que apostou em traduções não literais das letras, mas que respeitavam seu sentido. — Não quero criticar outras montagens, mas traduzir “Promisses, promisses” para “Promessas, promessas” [opção na montagem de Berbara] é trair a música. Era um outro momento do musical.

Botelho conta que se deparou com alguns desafios de interpretação. Como traduzir a expressão “Turkey Lurkey”, da canção “Christmas Party – Turkey Lurkey Time”? Maria Clara Gueiros, que além de atuar na peça, é dona dos direitos autorais, tradutora e produtora, levou a questão a seu irmão, que conhece Burt Bacharach e ligou para ele para perguntar. A resposta veio rápida e virou história deliciosa de bastidor: “Não há significado algum, mas é uma boa rima”.

Passada na Nova York da década de 1960, a peça é o retrato de uma época. Não só nos figurinos, garimpados de brechós, e no cenário propositalmente em tons de sépia criado por Rogério Falcão, mas nas relações apresentadas de escritório, na atualmente impensável necessidade de se levar a amante para um apartamento, e não para um motel, e na própria relação entre homens e mulheres. O número em que quatro caricatos personagens masculinos (interpretados por Fernando Caruso, Antonio Fragoso, Renato Rabelo e Ruben Gabira) descrevem a relação com suas amantes (com a música “Where can you take a girl”, traduzida para “Pra onde levar a mulher?”) é de arrepiar qualquer feminista na plateia.

Mas há upgrade nos personagens: a doce Fran de Malu Rodrigues (que, aos 24 anos, já é veterana em trabalhos de Möeller e Botelho: com esta peça, são 11 no currículo) não é tão passiva ou bobinha, fugindo do tom dado por Shirley MacLaine em 1960. Ela reage, fuma, enfrenta e responde ao amante que aquilo “faz parte da nova Fran”.

— Eu sou muito delicada, na aparência e no gestual, fiz balé por muito tempo. Tive que trabalhar esta interpretação para dar tons mais fortes e polacos à Fran. Na música, decidimos por tons mais graves, que não deixassem minha voz tão jovem, até para eu fazer um par crível com o Medici, que é mais velho, e que as pessoas achassem o casal fofo — explica Malu.

Funcionou. A diferença de idade é o que menos importa na relação entre Chuck e Fran. Marcelo Medici, escalado em um segundo momento da produção do espetáculo — a primeira ideia era ter Gregório Duvivier, que comprou os diretos da peça junto com Maria Clara Gueiros, no papel de Chuck — assume com maestria o personagem que já deu os prêmios Globo de Ouro e Bafta para Jack Lemmon, que já foi do galã Jardel Filho na primeira versão nacional da peça (1970), e que recentemente teve, no revival de 2010 na Broadway, a atuação de Sean Hayes (astro da série “Will & Grace”). E fica ali, entre o extremamente cômico e o extremamente dramático, afinal, o personagem é um poço de derrotas pessoais.

— Toda grande história de comédia flerta com a tragédia. O Chuck é um grande personagem de comédia. Sem ser caricato, ele tem uma coisa meio infantil e sofredora. É uma pessoa meia sombra, meia sola, meio nada. E o público vai se identificar, porque todos nós nos sentimos assim em algum momento da vida. Todo mundo já tomou um toco na vida — diz Marcelo Medici.

Sem maniqueísmos, os personagens vão se desdobrando. A Fran de Malu é amante, mas não é vilã, apenas se apaixonou pelo cara errado… Sheldrake, interpretado por Marcos Pasquim (que surpreende no vozeirão), também não é um aproveitador, ele gosta de Fran, mas não tem coragem de assumi-la… E a alucinada Marge MacDougall, de Maria Clara Gueiros? Em apenas duas aparições, no segundo ato, quando encontra Chuck no bar, Marge rouba a cena do espetáculo. Coisa de rir de chorar.

— Esta prostituta bêbada e desgarrada é um tiro. Um tiro certeiro. Quando vi o musical na Broadway, me apaixonei pela personagem. As pessoas dizem que sou louca de comprar os direitos apenas para fazer uma participação de duas cenas. Bobo é quem não vê que isso é o máximo — diz Maria Clara Gueiros.

DESAFIOS E VITÓRIAS

RAPIDINHOS

Todo o figurino foi costurado em menos de um mês. Os cenários também foram montados em tempo recorde. O cenógrafo Rogério Falcão armou uma oficina embaixo do palco para trabalhar na carpintaria e pintura das peças.

DE BRECHÓ

Boa parte do figurino e do cenário foi garimpado em brechós do Rio e de São Paulo. Algumas peças foram restauradas, como uma vitrola dos anos 1960 e luminárias. A cadeira em que o personagem de Medici se enrola (cena clássica do musical e do filme) é original de Charles Eames e foi cedida pelo Museu da Cadeira, de Richard Valansi.

CALÇADOS ESPECIAIS

Quase todos os sapatos foram feitos artesanalmente, para não machucar os pés dos atores.

OUTRO CHUCK

O personagem Chuck Baxter seria inicialmente vivido por Gregorio Duvivier, que comprou os direitos da peça junto com Maria Clara Gueiros. Com a agenda cheia, o ator cedeu o papel a Marcelo Medici, que brilha no protagonismo.

UMA BOA RIMA

Uma curiosidade pairava no ar durante o processo de tradução das letras das músicas de Bacharach: qual seria o significado da expressão “Turkey Lurkey”, da canção “Christmas Party – Turkey Lurkey Time”? Criador consultado, a resposta: “Não há significado algum, mas é uma boa rima”.


No telão e em outros palcos

Antes do musical, veio o filme, “Se meu apartamento falasse”, de Billy Wilder (1902-2002), seis vezes vencedor do Oscar e diretor de clássicos como “Crepúsculo dos deuses” (1950), “A montanha dos 7 abutres” (1951), “O pecado mora ao lado” (1955) e “Quanto mais quente melhor” (1959), entre muitos outros. Era 1960, e a comédia que trazia em seu elenco Jack Lemmon (Chuck) e Shirley MacLaine (Fran) arrebanhou os principais prêmios do setor, incluindo cinco Oscars (filme, diretor, roteiro original, direção de arte em preto e branco e edição). O sucesso do longa não passou despercebido pelos executivos da Broadway: em 1968, viria a primeira montagem do musical, com libreto de Neil Simon, importante produtor de teatro e roteirista de cinema (Simon escreveu mais de 40 peças, entre elas “Estranho casal” e “Sweet Charity”, e muitas viraram filmes de grandes estúdios americanos). As músicas eram de Burt Bacharach (estreante no assunto), e as letras, de Hal David (de quem Bacharach viria a ser parceiro constante). Com Jerry Orbach e Jill O’Hara no elenco (respectivamente Chuck e Fran), o musical teria mais de mil apresentações na Broadway, ganharia uma versão em Londres em 1969, com Tony Roberts e Betty Buckley, e teria uma carreira ativa até 1972. Só foi reencenada em 2010, incluindo duas canções de Bacharach (“I say a little prayer” e “A house is not a home”, esta última não presente no repertório carioca).

A primeira versão nacional da peça foi em 1970, quando o Victor Berbara, precursor nas montagens de musicais da Brodway por aqui (ele já havia encenado “My fair lady” e “Hello Dolly”), dirigiu “Promessas, promessas”, com o jovem galã Jardel Filho no par romântico com a cantora Rosemary (que estreava como atriz de musicais), além da ex-vedete Mara Rúbia, no papel hoje de Maria Clara Gueiros. — Vi a peça em Nova York e gostei muito. Imaginei que eu poderia transformar o segundo ato, apesar de ele não ter sido idealizado assim pelos americanos, em uma chanchada muito engraçada. Armei um verdadeiro picadeiro, que acho que foi o ponto alto da minha montagem. Bacharach viu no Brasil a peça e adorou esta mexida toda — conta Berbara, que, aos 89 anos, guarda vivas as lembranças dos ensaios e um pôster do musical na parede da sua sala. — Eu queria uma mulher jovem para interpretar Fran. Alcino Diniz, meu amigo e também diretor, me indicou a namorada, Rosemary, que já fazia sucesso como cantora. Achei a ideia boa, mas foi difícil. Eu trabalhava ela de manhã e, de noite, ele ensaiava com ela, mudando tudo. Dei um ultimato para ele: “Ou você confia em mim ou ela sai agora”. Ela ficou e deslanchou foi um prazer — lembra.

Fotos: Gustavo Miranda / Agência O Globo