Leia a opiniao dos criticos sobre o mais recente espetaculo da dupla Moeller e Botelho
O jornal O Globo deste domingo, 08/11/2015, traz duas criticas para Kiss me, Kate – O Beijo da Megera, o mais recente espetaculo da dupla Moeller e Botelho. Confira as criticas de Joao Maximo e Macksen Luiz aqui:
‘Kiss me, Kate!’ ‘SHAKESPORTER’
João Máximo
Os encenadores Claudio Botelho e Charles Möeller unem dois gênios respeitando a personalidade de cada um e mantendo a qualidade das composições, mesmo com a difícil tarefa de transpô-las para o português
Como se saíram em palco brasileiro música e letra de Cole Porter? Antes é preciso lembrar que não foi pela música que Porter hesitou em aceitar convite para fazer “Kiss me, Kate!”. Foi pelas letras. Logo ele, um dos três maiores letristas da história da canção em língua inglesa. A questão era como tomar liberdades com Shakespeare sem trair o bardo e sem abrir mão de seu próprio estilo, sofisticado, tecnicamente elaborado e repleto de duplos sentidos.
A música de “Kiss me, Kate!” é ótima. Foi o melhor trabalho de Cole Porter depois de alguns fracassos e modestos sucessos na Broadway. As letras, a mesma coisa. Para homenagear Shakespeare, Porter colheu no texto de “A megera domada” os títulos de duas canções: “Where thine that special face” e “Where is the life that late I led?”. E aproveitou várias ideias do original em outros versos de canção. Para pôr em cena sua malícia, compôs uma que pouco tem a ver com a história: “Too darn hot”, com referências ao Relatório Kinsey. Na época, um assunto que as pessoas ainda comentavam em voz baixa. Em português, também não faria sentido.
Musicalmente, a produção brasileira, em cartaz no Teatro Bradesco, no Village Mall, é competente, mesmo com as orquestrações reduzidas (Claudio Botelho & Charles Möeller preferiram as da montagem de 1999, mais moderna, de Don Sebesky, em vez da original, mais clássica, do mestre Robert Russell Bennett). É também daquela montagem “From this moment on”, descartada de outro musical de Porter, “Out of this world”, e aproveitada no filme de 1953 (com genial participação de Bob Fosse na parte dançada, em sua primeira coreografia no cinema). A canção também ficou de fora da produção brasileira, sem que se sentisse falta dela.
Já nas letras, Botelho fez o possível para respeitar Cole Porter, a quem ele tanto admira. Mas é um desafio pôr em português — dentro dos limites das melodias, ao mesmo tempo — tanto as palavras do bardo como as do letrista. Por exemplo, aqueles dois títulos viraram “O rosto que eu não vi” e “Cadê a vida que eu vivi?”. Porter, não mais Shakespeare. Mais feliz ainda foi Botelho ao optar por uma versão, e não uma tradução, para “Brush up your Shakespeare”, que virou “Chama o Shakespeare”, o número cômico do espetáculo. Boa ainda a forma como foram atenuados os versos masoquistas da melhor canção do programa (“doendo, sangrando…” para “taunt me, hurt me…”). E simplesmente perfeita a conversão de “Always true to you in my fashion” em “Eu sou sempre fiel, só que do meu jeito”, outro momento em que o humor de Porter/Botelho é fundamental.
Duradouro clássico com ar nacional
Macksen Luiz
A comédia musical de Sam e Bella Spewack recria as brigas de bastidores que o casal de atores americanos transferia para o palco enquanto corria em paralelo a encenação de “A megera domada”. A história é verdadeira e aconteceu em 1935, e a dupla de libretistas convidou Cole Porter para musicar as desavenças reais dos Lunts e as ficcionais de Shakespeare. O paralelismo é duplamente clássico. A estrutura do musical, estreado em 1948, tem no teatro a trama que apoia a evasão do gênero, reiterando suas características, mas com dramaturgia e trilha de qualidade. Porter e Shakespeare são eternos, e reuni-los para o divertimento inteligente passa ao largo de seguir fórmulas ou quebrar regras. “Kiss me, Kate!” é duradouro como são os produtos comerciais que não barateiam o valor da mercadoria, subjugando-a aos enganosos apelos da bilheteria.
A montagem de Charles Möeller (direção) e Claudio Botelho (versão brasileira), ainda que fiel ao espírito dos musicais do circuito Broadway-West End, tem respiração nacional e rigor próprio de execução. A tradução de Claudio Botelho, tanto das canções quanto do texto, alcança alto padrão, aclimatando-se ao nosso idioma com sonoridade fluente. As letras de Cole Porter, sejam as de dubiedade maliciosa (“Homens, não!”), as de poesia romântica (“Wunderbar”), e as de puro brilho (“Mais uma estreia”) ganham vocalização que chega aos ouvidos intermediada por rimas enriquecidas pela transposição do sentido.
O abrasileiramento se estende à direção que reuniu elenco, músicos e técnicos do melhor nível local de profissionalismo. A direção musical, regência e adaptação dos arranjos de Marcelo Castro e a orquestra de músicos competentes inundam o espetáculo em sintonia fina com as envolventes melodias de Cole Porter. Alonso Barros segue, como citação, o estilo coreográfico de tantos outros musicais. A cenografia de Rogério Falcão vai pela mesma linha, com telões pintados e maquinaria funcional. O figurino de Carol Lobato mescla as roupas de época com o colorido das vestes do show-business. Arrematando o quadro de bom acabamento, destacam-se a iluminação de Paulo Cesar Medeiros e o visagismo de Beto Carramanhos.
O elenco de 22 atores, cantores e bailarinos forma coeso ensemble no qual o protagonismo fica por conta das oportunidades oferecidas pelos papéis. Fabi Bang é a perfeita loura sexy, e Will Anderson, um cômico de burlesco. Jitman Vibranonski tem físico para compor figura senhorial. Ruben Gabira se mostra um dançarino em passos de humor. Guilherme Logullo sapateia acrobaticamente, e Chico Caruso cumpre a função de personalidade em cena. Alessandra Verney, com seu alcance vocal e presença atraente, duplica suas habilidades como Lili e Kate. José Mayer interpreta Fred e Petruchio com os recursos maduros de ator e solta a vigorosa voz de barítono com a autoridade de ótimo cantor.
Fonte: O Globo: 08/11/2015.
.