Nada será como antes para Milton Nascimento

Há dois dias um leitor me escurraçou só porque eu disse no Rio Show da última sexta-feira que Elis Regina era "a única cantora brasileira" que me emocionava. Ele agora vai ficar mais fulo ainda da vida, porque entre os homens, Milton Nascimento é o único cantor brasileiro capaz de me dar arrepios nas canelas.

 

Há dois dias um leitor me escurraçou só porque eu disse no Rio Show da última sexta-feira que Elis Regina era “a única cantora brasileira” que me emocionava. Ele agora vai ficar mais fulo ainda da vida, porque entre os homens, Milton Nascimento é o único cantor brasileiro capaz de me dar arrepios nas canelas. Nunca vi isso, mas é o que acontece. E não é que no último sábado, enquanto ouvia as obras-primas de Milton no palco de “Nada será como antes”, em cartaz no Teatro Net, ao olhar para trás para visualizar o teatro aplaudindo o fim da festa, vi justamente um par de olhos esbugalhados e cabelo de Naomi que me pareciam familiares… oh, wait! Era ele, Milton em carne, osso e lágrimas!

Ao final do espetáculo assinado pela dupla Charles Möeller e Claudio Botelho eu só conseguia pensar, emocionado, onde vou arranjar tempo para catar toda a discografia de Milton e preencher as (poucas) lacunas que ficaram para a total compreensão de um musical tão bonito. Foi ótimo ver Milton com olhos cheios de lágrimas, como eu, e com um ponto de interrogação na testa. Não sei o que o dele queria dizer mas a mensagem do meu era “de onde essas pessoas tiram tanto carinho com o teatro?”

Falo da dupla mesmo, que abandonou a parceria de um realizador potente como Luis Calainho para uma empresa que acabou de se erguer como parceiros captadores, e ainda assim conseguem tirar dinheiro do próprio bolso para montar um show como aquele. São dezenas de músicas de Milton, com arranjos vocais emocionantes de Jules Vandystadt (acho que é assim que se escreve), ele mesmo um dos integrantes do belíssimo elenco, e não falo apenas de belezas físicas. Não vou olhar a ficha técnica de propósito, para não perder o fluxo de consciência e brincar de Jack Kerouac, se Jack usasse pontos, e por causa disso não saberei o nome de quase ator algum mas ainda assim continuarei falando da emoção do número de uma deusa loura que volita no palco com seios à mostra, cantando perfume; de Claudio Lins rascante, dizendo que “Bicho homem precisa cantar”; do guitarrista; do “amigo” que se despede aos suspiros na estação; da potência vocal da cantora de “Maria, Maria”; da dupla de cantores negros que se emparelham às  altas castas do jazz mundial e de tantos outros momentos. Em cada um dos quadros, uma história, com um cenário de Rogério Falcão totalmente reorganizado criando verdadeiros videoclipes. Dezenas deles, construídos com os mesmos objetos de cena, de maneira ofensivamente simples para quem já trabalhou com tantas superproduções (como o time inteiro deste espetáculo), e ainda assim, desrespeitosamente criativa.

Brincadeira de Kerouac finda, (como sou atrevido, não?) volto ao momento final do espetáculo, quando a imagem de um emocionado Milton me respondeu a pergunta que me atormentou o musical inteiro: “Como será que se sente um compositor, aos 70, ao ver seu trabalho reverenciado desta maneira tão sensível?”

DAQUELE JEITO.

E quanto aos diretores que nós, cariocas amantes de musicais e de teatro, acompanhamos há tanto tempo, vai um agradecimento por nos lembrar dos tempos em que naquele mesmo shopping dos antiquários, há sei la quantos anos (não me lembrem, por favor) vi espetáculos tão simples como “Cole Porter”, em que a única coisa por trás era o talento, a criatividade, a vontade de fazer no matter what, mesmo que o cenário ao redor somente apontasse um caminho, o da TV, do cinema, dos conchavos e das amizades de ocasião. Ir na contramão é uma decisão difícil e corajosa. Que bom que eles a tomaram, mais uma vez. Nada será como antes.

Ronald Villardo (O Globo): 

Fonte: Blog Ronald Villardo – O Globo – 13/08/12