Leia a excelente crítica de Mauro Ferreira (Blog Notas Musicais) para Todos Os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos:
Resenha de musical
Título: Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos
Direção: Charles Möeller
Direção musical e roteiro: Claudio Botelho
Elenco: Claudio Botelho, Soraya Ravenle, Malu Rodrigues, Davi Guilhermme, Estrela
Blanco, Felipe Tavolaro, Lilian Valeska e Renata Celidonio
Foto: Leonardo Aversa
Cotação:* * * *
Em cartaz no Teatro Clara Nunes, no Rio de Janeiro (RJ), de quinta-feira a domingo
As memórias inexatas de Carlos (Claudio Botelho), dono de companhia de teatro mambembe, costuram o enredo de Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos, espetáculo de Charles Möeller & Claudio Botelho recém-estreado no Teatro Clara Nunes, no Rio de Janeiro (RJ). É um jorro desalinhado que alude às confusões mentais d’O velho Francisco (1987) criado pela imaginação de Chico Buarque, compositor carioca que tem seus 70 anos de vida e 50 de música celebrados com o musical. Mas O velho Franciscoinexiste na cena povoada por outras personagens saídas da obra do mais teatral dos grandes compositores da MPB nascida na era dos festivais dos anos 1960. Com diálogos pontuais, a cena é narrada e preenchida pelos versos das 47 músicas selecionadas para o roteiro aditivado também com breves lembranças de temas como o bolero Anos dourados (Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque, 1986), citado na introdução de Sem fantasia (Chico Buarque, 1967). É das canções compostas por Buarque para teatro, cinema e TV – em período que vai de 1965 a 1989 – que se nutre o espetáculo, dando sentido conceitual à costura das lembranças hesitantes narradas em off pelo protagonista, pois o musical embaralha as 47 canções do velho Chico no jogo cênico da reconstrução da memória.
Os 90 minutos do título são, a rigor, cerca de 120, mas o tempo flui fácil no desenrolar do enredo – e o aparte jocoso de Carlos com a plateia por conta da duração do musical é o único momento dispensável deste espetáculo por quebrar o clima e a magia do teatro. O espetáculo reitera o apuro da dupla Möeller & Botelho na criação de musicais que recusam fórmulas. Mesmo que a receita de Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos contenha ingredientes de Beatles num céu de diamantes (2008) e Milton Nascimento – Nada será como antes (2012), espetáculos calcados nos textos das canções, o tempero e o sabor são outros. A contratação de Margarida (Malu Rodrigues) pela trupe – contra a vontade da voluptosa Dora (Soraya Ravenle), a Primeira Dama da companhia – dá a partida no fio de enredo desenvolvido através das letras das canções de Chico. E o resultado é um espetáculo belo, harmonioso e – em alguns momentos – arrebatador. A alta qualidade das músicas já garante por si só a coesão do roteiro musical. Afinal, trata-se do melhor da obra do compositor brasileiro que mais inspiração mostrou ao compor para a cena – às vezes, com o auxílio luxuoso de outro gênio da MPB, o parceiro Edu Lobo, criador de melodias sublimes como a de O circo místico (1983 – tema-título do musical O grande circo místico), música que abre o espetáculo na voz límpida de Malu Rodrigues. Não é fácil cantar Chico pela teatralidade entranhada em suas músicas. Contudo, o afinado elenco quase sempre se encarrega com brilhantismo do ofício de dar voz a essas grandes músicas já eternizadas em registros antológicos. Atriz e cantora aplaudida com entusiasmo pelos espectadores de musicais cariocas, Soraya Ravenle impacta ao solar Não sonho mais (1979 – do filme República dos assassinos), Gota d’água (1975) – com uma batucada de samba ao fundo – e Vida (1980 – da peça Geni), músicas já definitivamente associadas às vozes de Elba Ramalho, Bibi Ferreira e Maria Bethânia. Grande cantora ainda restrita ao universo dos musicais, Lilian Valeska ombreia com a primeira dama Soraya quando dá sua voz encharcada de alma e soul a um arrepiante Funeral de um lavrador (Chico Buarque e João Cabral de Melo Neto, 1965 – tema da peça Morte e vida Severina) e, mais tarde, à Palavra de mulher (1985 – do filme A ópera do malandro), mas rende menos no dueto lésbico feito com Renata Celidônio em Mar e lua (1980 – da peça Geni). Em contrapartida, Estrela Blanco – intérprete da mocinha Rita – se revela incapaz de expor toda a dimensão sensual e dramática de Teresinha (1977 – tema da peça Ópera do malandro) sem comprometer a cena que revela um ator/cantor promissor, Davi Guilhermme (Juca), absolutamente sedutor na abordagem histriônica do Tango do covil (1978 – outro tema da Ópera do Malandro). Estrela alcança seu melhor momento no terceiro quadro, quando encarna a nordestina estilizada de A violeira (Tom Jobim e Chico Buarque, 1983, do filme Para viver um grande amor). É quando o público faz papel de plateia da trupe.
Tiradas de seu contexto cênico original, as 47 músicas permanecem inteiras, quase sempre encadeadas de forma natural no enredo que acompanha o percurso mambembe da trupe de artistas. Ideal para caracterizar esse universo, Show bizz (Edu Lobo e Chico Buarque, 1985 – do musical O corsário do rei) imprime tom burlesco no primeiro dos seis quadros – ou oito, se contabilizados a abertura e o final inusitado com Flor da idade (1975 – da peça Gota d’água) nas vozes de todo o elenco. Mas o tom lúdico – reiterado no fraseado infantil da interpretação coletiva da Ciranda da bailarina (Edu Lobo e Chico Buarque, 1983 – d’O grande circo místico) – se harmoniza em cena com as cotidianas dores de amores que nunca saem no jornal. É nesse contexto amoroso, pautado por (des)encontros afetivos, que Bom conselho (1972 – do filme Quando o Carnaval chegar) serve de veículo na voz de Soraya Ravenle para a exposição da raiva dirigida pela Primeira Dama Dora à intrusa Margarida. Já O meu amor (Chico Buarque, 1978 – da Ópera do malandro) ganha clima de tango e tom gay no dueto entre Davi Guilhermme e Felipe Tavolaro. Davi bisa a luminosidade de sua atuação no musical quando cai no Samba do grande amor (1983 – do filme Para viver um grande amor) em número dirigido à personagem de Renata Celidonio, que interpretara o bolero Sob medida (1979 – do filme República dos assassinos) minutos antes. Nessa quadrilha em que todos são tirados para cantar, o casal protagonista Carlos e Dora se desenlaça ao som do medley que une Invicta (1989 – da peça Suburbano coração) – a música (solada por Soraya) mais desconhecida do roteiro – e Suburbano coração (tema-título da peça de 1989) para no fim acertar as contas.
Enredos à parte, o espetáculo prima pelo requinte de luz (de Paulo César Medeiros), cenário (de Rogério Falcão) e figurinos (de Marcelo Pies), apresentando criativas soluções cênicas. O número em que o elenco se ilumina com lanternas no palco às escuras, enquanto canta Pedaço de mim (1978 – da Ópera do malandro) é especialmente memorável. Feitas sob a direção musical de Claudio Botelho, as orquestrações e arranjos do guitarrista e violonista Thiago Trajano se harmonizam com os arranjos vocais de Jules Vandystadt – estes especialmente inventivos em Roda viva (tema-título da peça de 1967) porque se distanciam dos vocais da gravação emblemática feita por Chico com o grupo MPB-4 – sem macular a arquitetura melódica das canções. No máximo, uma ou outra música é apresentada com divisão mais inusitada, caso em especial de Mambembe (1972 – do filme Quando o Carnaval chegar). Enfim, Möeller & Botelho se apropriam da obra do velho Francisco Buarque de Hollanda com a devida reverência ao gênio. No jogo cênico da memória, todos os musicais de Chico Buarque dão origem a um outro musical de 120 minutos que vão ficar na lembrança do velho Francisco.
Fonte: Blog Notas Musicais – Mauro Ferreira – 16/01/2014.