Crítica Tania Brandão para Nine – Um Musical Felliniano: Para viver a liberdade da poesia

"Você, humano totalmente humano, já sonhou viver no mais completo estado de liberdade, como se você próprio fosse a mais pura poesia. Ou não? Pois você pode viver isto no teatro: é Nine – um musical felliniano, espetáculo exemplar de Charles Möeller e Claudio Botelho, um momento de criação genial. Nem pense em deixar de ver, corra, a temporada vai ser muito curta. Em cena, você vai ter o imenso prazer de ver um dos mais deslumbrantes espetáculos de teatro musical já apresentados no Rio, cartaz do Teatro Clara Nunes. Se você gosta muito da sua humanidade, cuide dela, vá ver. Vai ser bom, pode ter certeza..."

“Você, humano totalmente humano, já sonhou viver no mais completo estado de liberdade, como se você próprio fosse a mais pura poesia. Ou não? Pois você pode viver isto no teatro: é Nine – um musical felliniano, espetáculo exemplar de Charles Möeller e Claudio Botelho, um momento de criação genial. Nem pense em deixar de ver, corra, a temporada vai ser muito curta. Em cena, você vai ter o imenso prazer de ver um dos mais deslumbrantes espetáculos de teatro musical já apresentados no Rio, cartaz do Teatro Clara Nunes. Se você gosta muito da sua humanidade, cuide dela, vá ver. Vai ser bom, pode ter certeza…”


A crítica Tania Brandão escreveu um belo texto sobre “Nine – Um Musical Felliniano intitulado “Para viver a liberdade da poesia”. Confira baixo a crítica na íntegra:

Você, humano totalmente humano, já sonhou viver no mais completo estado de liberdade, como se você próprio fosse a mais pura poesia. Ou não? Pois você pode viver isto no teatro: é Nine – um musical felliniano, espetáculo exemplar de Charles Möeller e Claudio Botelho, um momento de criação genial. Nem pense em deixar de ver, corra, a temporada vai ser muito curta. Em cena, você vai ter o imenso prazer de ver um dos mais deslumbrantes espetáculos de teatro musical já apresentados no Rio, cartaz do Teatro Clara Nunes. Se você gosta muito da sua humanidade, cuide dela, vá ver. Vai ser bom, pode ter certeza.

 Em primeiro lugar, vale o destaque – apesar de ser um trabalho consagrado e premiado na Broadway, ele tem um sabor especial para nós, que vivemos aqui uma crise histórica sem precedentes, na qual se espera que o indivíduo, este ser mágico que foi capaz de criar a Grande América, se erga da pasmaceira tropical e mude o rumo do país. Bem, não vai dar certo: Nine – um musical felliniano, um musical americano de profunda inspiração felliniana, deseja apontar com precisão que o culto exacerbado ao indivíduo-deus é uma ilusão. Ou um delírio. Está bem, vamos ser objetivos: acreditar no indivíduo solitário como panaceia para todos os males é um tremendo equívoco, um simples truque de arte. Tudo com muito humor, é claro, humor amargo, ou Fellini não poderia ser associado à história.

 

A trama gira – e gira mesmo, com muita música, bela e envolvente, de Maury Yeston – ao redor de Guido Contini, diretor de cinema recém saído de uma produção, pressionado para engatar em outra, sem inspiração e sem conforto existencial para fazê-lo. Nicola Lama assume o centro da ação como o diretor desorientado, à deriva dos seus impulsos e do seu vazio, um oco humano, com uma garra e um brilhantismo impressionantes. O ator é o mestre absoluto da cena, senhor das palavras, do canto, da dança, da expressão, como se não houvesse vida fora do palco. Partner de qualidade, suas contracenas com o elenco feminino e com o notável ator mirim Luiz Felipe Mello são encontros de arte inesquecíveis. O texto de Arthur Kopit, ao fechar o foco ao redor do protagonista, oferece material poético de extrema contundência para que se chegue a este resultado, nas mãos e no cérebro de um grande ator.

 

Explique-se: na sua origem, Nine era um pouco menos. Afinal, a fonte de inspiração do musical é o histórico filme 8 ½, de Fellini, obra-prima do diretor italiano, uma criação bastante calcada em sua própria biografia e de certo sabor premonitório, pois a trama, entre o real, a fantasia, o surrealismo e o delírio, desenha os impasses de um diretor que não consegue fazer o seu filme do momento, em boa parte massacrado pelo sistema cinematográfico. Ali o panorama é mais amplo do que na versão para o teatro, a marca do neorrealismo italiano se fez presente. O artista atormentado, também emaranhado na sua ciranda afetivo-existencial, sucumbe diante da pressão dos produtores e de todo o edifício da indústria mercantilista do cinema, que o cerca, de certa forma o mesmo constrangimento que envolverá Fellini no final de sua carreira. Irônico, o filme faz da passarela humana, em especial no final, um desfile de circo, arte amada por Fellini. E sempre desponta ao redor de tudo um certo tom grotesco.

 

Portanto, a fonte de inspiração explica o título Nine – assim como Fellini nomeou o seu filme considerando que fizera, antes, sete filmes e meio, graças ao curta-metragem Bocaccio 70, os autores da versão teatral optaram com humor pelo nove para sugerir a criação de uma obra “meio” Fellini. Levaram toda a ação, a real e a imaginária, para um spa, onde o diretor decide se abrigar, escolha dramatúrgica interessante porque traz para o universo de Guido o ponto de visão de todos os fatos. Lá, o artista angustiado pretende se recompor fisicamente, reencontrar sua verve criativa, restaurar o seu casamento, acertar as contas com a amante, cortejar a sua musa, calar com amor e charme a imprensa, adiar as decisões cobradas para o novo filme, uma obra que estaria em andamento, mas da qual ele não tem sequer a menor ideia de como iniciar. Ou seja: um ser livre, mas em estado de falência, sob uma crise física, criativa, afetiva, moral, existencial…

 

É comovente, porque há uma criação estética completa, digamos, uma obra de arte impressionante. O que a límpida direção de Charles Möeller buscou desenhar em cena, a partir da excelente tradução de Cláudio Botelho e de uma sublime articulação com a competente equipe de arte reunida na ficha técnica, é uma proposta ousada. A proposta de falar da obra de arte impossível, aquela que não se consegue expressar, aquela pulsação do momento de crise. Dói e é divertido. Em cena, o sujeito se vira pelo avesso e expõe a sua impotência, pateticamente envolto em mulheres deslumbrantes, fortes, deusas da arte e da vida cotidiana, sem conseguir fazer o filme pretendido. Ele não consegue ser o senhor de sua vida, apesar de ser um indivíduo, a princípio, em puro estado de liberdade. Os nervos e a carne viva da criação pulsam, expostos, se transmudam em requintada teatralidade.

 

Cabe ao cenário de Rogério Falcão, trabalhado pela iluminação artesanal de Paulo Cesar Medeiros, um papel decisivo para a construção deste lugar teatral que é a um só tempo o lugar da liberdade e da pura arte em movimento. À diferença do cenário da montagem mais recente da Broadway, monumental em sua sugestão de azulejos, o cenário da montagem brasileira recorreu à madeira clara, também usada em saunas e spas, criando diferentes áreas e planos de representação, ao lado da essencial escadaria. Além da insinuação da ideia de quadro, moldura de arte, a solução trouxe para a montagem uma aproximação com uma outra referência preciosa a respeito de nossa época e do mercado de almas, pessoas e sensibilidades de nosso tempo: a moda e suas passarelas.

 

Os figurinos contundentes de Lino Villaventura ecoam esta aproximação, projetam o nosso circo elegante de cada dia, as pequenas representações inúteis de grandeza, assim como a luz de Paulo Cesar Medeiros projeta, esconde, envolve, amortece ou sublinha, cria diferentes planos de atuação e de percepção. O jogo expressivo se completa com o visagismo de Beto Carramanhos, vagando entre inúmeras sutilezas da percepção do individual. Ao lado dos arranjos vibrantes de Marcelo Castro, as coreografias de Alonso Barros e Charles Möeller recriam as soluções originais com encanto e organicidade, criam formas novas de expressividade contundente. Os músicos em cena fecham o ciclo de elevado padrão criativo.

 

Vários são os momentos de pura emoção oferecidos em cena, frutos do trabalho de um elenco de impecáveis cultores do melhor exercício da arte. Destaque-se a função dramatúrgica dos diversos papéis, concebidos de maneira complementar, na verdade hábeis recursos para revelar as facetas de Guido-indivíduo-criador-homem-arte-amante- ser-desesperado. Para cumprir estes papéis, a escalação dos intérpretes aconteceu sob um fluxo de inspiração abençoado. Além dos dois papéis masculinos, o adulto e o garoto, indícios claros desta estrutura complementar, de contraposição, a escalação de cada atriz aconteceu em sintonia profunda com a função dramatúrgica e o jogo de forças ao seu redor. Assim, cada papel traduz com intensidade um estado do ser ou da alma, articulado com a densidade da atriz selecionada. Há um impressionante caleidoscópio de mulheres: cada papel conta com um outro papel de alcance complementar, elas nutrem curiosas relações de equivalência entre si, são arquétipos muito bem resolvidos.

 

Totia Meireles define o lugar do poder opressor do mercado na figura da empresária obcecada, decidida, mas contaminada pelo poder da arte, pois foi vedete do teatro de variedades. O seu número, Folies Bergère, é inesquecível, primoroso, uma explosão de sensualidade elegante, evocação sofisticada do charme francês. Ela é o real, mas o real da arte, e integra com intensidade o imaginário de Guido, pois ele a teria conhecido menino, teria invadido o palco quando ela atuava como estrela no show.

 

O seu contraponto lógico, o apoio afetivo que sugere o nascimento da pessoa do diretor, indivíduo sem limites, arrogante, apto a desafiar o mercado e tudo o mais, é a mãe, entre omissa e condescendente, delicada filigrana sentimental elaborada por Sonia Clara. Uma outra mulher contrabalança as duas instâncias de poder: a esposa, amada mas maltratada, relegada ao limbo da vida, desempenho sentimental de tom sofisticado assinado por Carol Castro, um trabalho lindo, uma surpresa comovedora, sublime.

 

Ao lado desta vertente de afirmação mundana e afetiva, que indicaria o registro positivo, eficiente, do compromisso com a vida e com a produção, há o desregramento, a elasticidade moral, o ímpeto transgressivo e até destrutivo. O longo fio de autoimolação, bastante vinculado à escola e à igreja, remonta a Sarraghina, a prostituta da infância, sequência solar arrebatadora, responsável pela revelação de uma jovem atriz esfuziante, Myra Ruiz – anotem este nome. O quadro Be Italian, ao lado do menino Luiz Felipe Mello, uma versão estilizada da tarantela, se projeta como o segundo quadro musical inesquecível da montagem.

 

Mas a beleza explosiva do palco não acaba por aí. Impossível deixar de louvar o trabalho flamejante de Malu Rodrigues como Carla, a amante loura, excessiva, inconveniente e cafona de luxo, a forma feminina inclinada a viabilizar mais completamente o desejo de poder absoluto de Guido, cuja personalidade é capaz de reunir a esposa e a amante no mesmo spa. Nos números A Call from the Vatican e Simple, Malu Rodrigues mostra porque é uma das atrizes absolutas do novo musical brasileiro – canta com perfeição, tem domínio total da expressão física e sentimental, domina a cena com uma mistura de técnica e emoção de uma sofisticação ímpar. Se a sua Wendla, no musical O Despertar da Primavera, entrou para a história do teatro brasileiro como a imagem acabada da vitalidade inocente, a sua Carla de agora transcende o quadro de Nine – um musical felliniano para imprimir na nossa história uma versão nova e original do ícone da pequena pecadora inocente levada da breca depravada irresistível.

 

E muito mais se poderia escrever sobre a grandeza do desempenho de todo o elenco, Charles Möeller e Claudio Botelho assinam aqui uma obra de direção de atores em musical de extrema densidade. Leticia Birkheurer brilha de fato como a repórter-estrela Stephanie, editora da revista Vogue, e resolve com maestria o desafio do número Cinema Italiano. Karen Junqueira é a altiva musa-atriz-estrela ciosa de sua carreira, perfeita efígie do amor platônico, um desempenho no mínimo correto, comparável ao profissionalismo de Ágata Mattos, Camilla Marotti, Laís Lanci, Lola Fanucchi, Priscila Esteves.

 

De resto, o destaque não deve ser apenas para a qualidade impactante da montagem. A encenação faz jus à grandeza da peça original, um evento histórico decisivo na história do gênero, uma proposta de alta voltagem, peça de notável significado para a revitalização do musical na Broadway, quando de sua estreia. Importa observar, ainda, na verdade, a maturidade da cena brasileira registrada neste trabalho e – claro, não se poderia deixar de falar nisto – a importância do fato de se ter esta proposta de excelência por aqui. Trata-se de musical mesmo, no sentido mais rigoroso da definição, uma forma de cena em que música, texto, canto, dança, interpretação se encontram quase em conjunção divina, para libertar a todos nós, na plateia, das cadeias imaginárias que castram o poder do indivíduo. Para os debates acerca da natureza do musical, a contribuição tem valor absoluto.

 

Claro, por ironia, como não poderia deixar de ser num grande musical,
Nine – um musical felliniano vem nos mostrar a vontade de liberdade mas, ao mesmo tempo, nos dizer da limitação, da fraqueza, da impotência do indivíduo diante do poder do mundo. Só mesmo na cena de um musical de excelente padrão criativo conseguimos nos ver assim livres, como a mais pura poesia, a contemplar a suposição de que somos uma espécie de obra de arte. A ilusão nos fortalece, nos leva a crer em nós. E no mundo. Mesmo que, na saída, nos espreite uma vidinha pequena, revoltante. Ah, vamos lá, mexa-se – reconhecer nossos limites é remédio que nos fortalece. Portanto, saia da poltrona, vá correndo ver, a oportunidade é única: talvez você não consiga outra chance de se sentir tão livre assim tão cedo.


 
* Publicado originalmente no site de Tania Brandão em 31/10/2015.

 

 

 

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