Segundo crítico Rodrigo Fonseca, 50º filme de Renato Aragão mescla aventura, riso e música com equilíbrio
O filme ‘Os Saltimbancos Trapalhões: Rumo a Hollywood’ ainda nem estreou, mas já tem sua primeira (e incrível) crítica!
Segundo Rodrigo Fonseca, do site Almanaque Virtual, “em tom de homenagem ao clássico de J. B. Tanko, o 50º filme de Renato Aragão mescla aventura, riso e música com equilíbrio e ainda cria um vilão memorável, vivido por Nelson Freitas”.
Confira a crítica na íntegra abaixo:
Apoiado na presença do maior mito masculino do cinema brasileiro desde Oscarito, o clown de cara limpa chamado Renato Aragão, Os Saltimbancos Trapalhões: Rumo a Hollywood carrega, por baixo de sua casquinha crocante de encantamento, um frescor que faltava para irrigar o solo há anos esturricado do cinema infantojuvenil brasileiro. Há indícios de que esta seara – na qual Didi reinou soberano nos anos 1970 e 80 – vá verdejar de novo, sob esforços como o da franquia Carrossel, do vindouro Pluft, o Fantasminha e, agora, a partir de 19 de janeiro, com o picadeiro erguido com delicadeza por João Daniel Tikhomiroff, diretor de publicidade mais premiado no país, que passou a cineasta em 2009 com Besouro, que valeu a ele aplausos no Festival de Berlim. A maior contribuição que esta mistura azeitada de aventura, comédia, música e circo dá à faixa de dentes de leite do circuito nacional está em sua aposta no lúdico, devolvendo às nossas telas um lirismo nas raias do onírico, coerente com o imaginário universal da infância (não importa a que geração ela pertença, seja ela a infância pé no chão ou a infância conectada via web) e com o imaginário do Cinema. Aliás, é aí que vive a beleza maior deste filme que amplia substancial e poeticamente – de maneira raramente vista – a figura de Didi, para além de sua faceta chapliniana: Tikhomiroff, apoiado no roteiro de Mauro Lima (diretor de Meu Nome Não é Johnny), presta um tributo ao encanto do Cinema, começando por uma homenagem a Os Saltimbancos original, de 1981. O “Rumo a Hollywood” no título já deixa isso claro.
Não há como se encarar o filme atual como um remake do clássico de J. B. Tanko, que é considerado pela crítica, com unanimidade, o mais inspirado momento de Aragão nas telas. É um equívoco classificar o filme de Tikhomiroff como refilmagem da fita dos anos 1980, decalcada do espetáculo de Chico Buarque, Luis Bacalov e Sérgio Bardotti, até porque, entre eles, em 2014, houve um musical homônimo para os palcos, urdido pela dupla Charles Möeler e Cláudio Botelho, com um distanciamento histórico e estético do que foi feito há três décadas. O filme atual também não deve ser visto como uma adaptação da peça. Ele é um procedimento distinto – e mais sofisticado. É algo que seria melhor definido como “revisita”, um conceito comum à teoria literária para romances que revisitam prosas anteriores, e que foi aplicado no cinema por Manoel de Oliveira no rascante em Belle Toujours(2006) ao “revisitar” A Bela da Tarde (1967), de Buñuel.
Havia em Os Saltimbancos Trapalhões (1981) a história de quatro clowns que faziam uma atriz (Lucinha Lins) a fazer um espetáculo sob a ameaça de um mágico trapaceiro. Lá, Didi (Aragão) era o Chaplin de sempre: o desgarrado, sem pertencimento, que faz do torto a linha reta para os outros. Aqui, em Rumo a Hollywood, cuja sequência de abertura é uma antológica (e hilária) tiração de sarro com o Oscar e com a cobertura da festa da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, Didi tem outra posição: sem perder sua natureza picaresca, este Pedro Malasartes de Sobral achou um lugar e um status que nunca teve, o de autor. Ele ainda é a encarnação do terceiromundismo, segue excluído, segue humilhado: mas não é mais o anjo errante a olhar a História com olhos de cachorro que caiu da mudança. Ele agora é respeitado como alguém que faz. Todos no circo enxergam nele um oráculo e, para a estrutura dramatúrgica montada por Lima/Tikhomiroff, o protagonismo dele é claro e absoluto: na narrativa, a jornada a ser cumprida é dele, a correção a ser alcançada também (ao pobre caberá o Céu).
Já Dedé, também de volta, assume (bem) um posto de comentador, fazendo réplicas, tréplicas e troças das palavras de seu amigo. Numa condição de “oponente”, de doce oponente, entra o eterno Sargento Pincel, o comediante Roberto Guilherme, para ser o Barão, tendo à sua direita (mas uma direita do Mal) o atirador de facas Satã (Marcos Frota) e a femme fatale Tigrana, confiada a uma inspiradíssima Alinne Moraes, que achou na maldade um ambiente para usar e abusar de suas ferramentas cênicas, até cômicas. E há um vilão bem definido, que, se não fosse pelo carisma tamanho GG de Aragão, perigava roubar o filme pra si: Nelson Freitas, brilhante na pele e no sotaque capirão do Prefeito Aurélio Gavião, o elemento que introduz a corrupção e questões mais contemporâneas (expropriação de terras, mamatas) ao idílico universo dos Trapalhões. Colega de Freitas em Zorra Total, a atriz Maria Clara Gueiros também tem sua uma cota de gargalhada a extrair da gente, na pele de uma falsa vidente – a cena dela com Marcos Veras é de se rir aos quilos.
Em Os Saltimbancos de Tanko havia uma relação platônica de amor entre Didi e Karina, que volta aqui bem defendida por Letícia Colin, cuja inteligência cênica reduz na medida certa os coeficientes trágicos e melodramáticos de mocinha de sua personagem, a fim de fazer dela uma heroína mais contemporânea. Karina é uma administradora recém-formada que volta ao circo para reaver o aconchego do abraço do pai, o Barão, e o colo do amigo Didi, que a enxerga com um carinho paternal. Os componentes românticos foram concentrados no enrabichamento de Karina pelo motoqueiro Frank (o ótimo Emílio Dantas, retomando um tom épico que talhou para si no subestimado filme Leo e Bia) e na paixão de uma jovem integrante do circo, Luiza (Livian Aragão, com um jeitnho Meg Ryan de sorrir), por um acrobata recém-chegado (Rafael Vitti). Com o amor no lugar certo, há espaço de sobra – mas na medida, graças à montagem lépida de Letícia Giffoni – para que a trama se desdobre no embate de Didi para tirar o circo do vermelho, debelando os esquemas de Gavião.
No ambiente circense, a direção de arte de Cláudio Amaral Peixoto se lambuza nas cores para criar um ambiente vivo, com as sombras de nostalgia da era de ouro dos espetáculos de picadeiro. Já as cenas de Gavião tem uma ambientação com elementos mais ocres, de cores saturadas, retratando o peso trágico daquela figura nefasta. Tudo isso sobressai na fotografia de Hélcio “Alemão” Nagamine, uma das mais inspiradas deste artista da lente que já dera o melhor de si em Se Deus Vier, Que Venha Armado (2013). Nagamine quebra com o pacto de realismo do visual dos filmes clássicos dos Trapalhões. Este Os Saltimbancos Rumo a Hollywood não busca o real e sim o sonho, usando a ilusão do Cinema como sua matéria-prima, fazendo jus a seu moto primeiro: a figura de Aragão. Afinal de contas, se existe um sinônimo pro verbo “sonhar” típico do cinema brasileiro foi Renato Aragão que o inventou.
p.s.: Leve um lencinho de papel pro cinema, pois a sequência em que se canta Meu Caro Barão é de ensopar o chão.
Fonte: Almanaque Virtual – por Rodrigo Fonseca. Link original aqui.